Como aprender sem o saber do Outro?
Algumas reflexões sobre o autismo na escola    

EmLa pluie d’été, livro de Marguerite Duras, o personagem Ernesto, uma criança que deve ter “entre doze e vinte anos”[1], frequentará só dez dias a escola. Na manhã do décimo dia volta para casa para dizer a sua mãe que não pensa em voltar para as aulas, posto que na escola lhe ensinam coisas que não sabe[2]. Ernesto é o filho primogênito de uma descendência de sete e que moram na periferia parisiense. Um dia ele e seus irmãos encontraram um livro de couro preto com um furo em seu interior, um buraco provocado pelo fogo. O menino, fascinado por este objeto, mergulha no silencio e se afasta com o livro queimado, que não é nem mais nem menos que a Bíblia. Ernesto emerge de seu silêncio para afirmar com toda certeza que leu o livro. Seus irmãos lembram-no que não sabe ler e, portanto, é impossível que tenha lido. Ernesto responde que aprendeu a ler e que pode lhes relatar o conteúdo. Para comprovar a veracidade de sua afirmação, questionam o professor, que assombrado pela “sede de conhecimento da criança”, recomenda sua escolarização.

   

Esta bela história relatada por Marguerite Duras assinala uma questão fundamental, que pode ser formulada assim: do que se trata quando se trata de aprender? Ernesto não pode suportar ir à escola,por que lá lhe ensinam coisas que não sabe. Isso parece um gracejo, mas não é. Digo melhor, se assemelha a um“witz” que, como tal, contém uma verdade. Ernesto, aprendeu a ler sozinho com seu objeto, o que nos indica algo a se levar em conta, frente a qualquer empenho de ensinar, ao querer que uma criança autista aprenda.

   

A escolarização das crianças autistas constitui atualmente uma questão fundamental na planificação das políticas para o autismo. A pressão para incluir as crianças com autismo na escola pública obedece, por um lado, uma substituição da clínica pela pedagogia; e, por outro lado, a supremacia do pensamento do“igual para todos”. Do meu ponto de vista, é peremptório que a psicanálise entre neste debate. Não só porque a psicanálise tem, obviamente, muito a dizer sobre o autismo, além do que os psicanalistas devem poder estar à altura da nossa época.

   

Os ideais pedagógicos se sustentam na necessidade e na conveniência de ir à escola para aprender o que não se sabe. No entanto, para o sujeito isso não é suficiente, pode ser que nem sequer seja relevante. Para aprender é imprescindível que seja posta em marcha a transferência e, para isso, a suposição de que o Outro sabe. Definitivamente, a intervenção do Sujeito Suposto Saber.

   

Não há dúvida, com as coisas assim delineadas os autistas apresentam um desafio. Em primeiro lugar, porque a relação que têm com o Outro é bastante real. Sabemos que se protegem muito dos efeitos, pois, esses podem ser devastadores, quando se defrontam com o desejo do Outro. Então, como aprender sem que o saber esteja no Outro? Que o livro cause fascinação em Ernesto, que seja uma Bíblia com um furo, não é, simplesmente uma bela imagem literária. Verdadeiramente, o furo, mais do que um acidente que o estimulasse a ler o livro, constitui-se em seu traço imprescindível. Finalmente, diante de uma criança autista um professor deve buscar, até encontrar a boa maneira de encarnar esse real inscrito no livro do saber.

   

Frequentemente, constatamos que as crianças autistas não expressam nenhum interesse ao que lhe oferecemos, a menos que tenha algo ali que os atraia à sua maneira. No entanto, aprendem. Talvez, devêssemos suprimir o “no entanto” e sublinhar “à sua maneira”, condição essa absolutamente imprescindível. Tenho escutado muitos pais contarem que seus filhos “aprenderam a escrever sozinhos”, isto é, sem a intervenção direta, nem evidente, do Outro. Se tratam de crianças, as quais lhes ensinamos que evitemos caminhos, inacessíveis para eles, do desejo do Outro. O que os obriga, portanto, a tomar, a desenhar, seus próprios caminhos.

     

O lugar do professor

   

Como aprender sem o saber do Outro? Que Outro fazer existe precisamente na relação com o saber, quando o Outro é muito real? Estas duas perguntas me parecem um ponto de partida necessário para a reflexão sobre o autismo e a educação. Embora, analisadas com atenção, elas sugiram que a posição do professor deve ser profundamente original, à contracorrente do habitual, mais ainda, seria contra o sentido comum do pedagógico. E, sobretudo, uma posição aberta à invenção.

   

Com efeito, a prática com o autismo soba orientação lacaniana, especialmente, a partir dos trabalhos práticos, entre vários outros, pôs em relevo que essa prática não passa pela via do Sujeito Suposto Saber, passa sim pela via do sintoma, e essa é a via que convém ser tomada. Essa via supõe que não há nada escrito, decidido de antemão, senão que o saber está para ser construído a cada vez. Freud foi muito claro ao indicar que deveria ser sempre assim, para um analista, onde cada caso é um novo caso. Pois bem, também esta suspensão voluntária de saber, é uma condição de trabalho com os autistas. E o é, na medida que possa vir a sustentar, tanto a posição que permite escutar o que a criança tem para nos dizer, como também, para que ela possa escutar o que temos a lhe dizer.

   

A suspensão voluntária de saber vem acompanhada da renúncia efetiva de manifestar algum desejo. Nenhum desejo, de ensinar a ler, a contar, a escrever. Melhor é, seguira fórmula precisa de Jacques-Alain Miller, dada em seu seminário O ultimíssimo Lacan: “Aguardo, mas não espero nada”. Miller afirma que esta frase significa que “o S1, justamente porque tem o sentido do Um, implica, aguarda, pede um S2, mas sabe, ao mesmo tempo, que não virá”[3]. A sua prática com vários autistas demonstrou, através de seus casos clínicos, a importância de se evitar completar o S1 da criança com um S2.

   

Aguardar sem esperar nada libera do imperativo de sentido e permite trabalhar de outra maneira. Assim, no lugar de oferecer sentido para a criança autista, o analista deve operar com o fora de sentido, operar com outro S1. Finalmente, a criança autista rechaça o sentido, mas não o intercâmbio. Trabalhar de fora do sentido, com os S1 produzidos pela criança, promove efeitos insuspeitáveis.

   

Por outro lado, como se faz com os S1 do autista para produzir algo novo? No prefácio ao livro de Hélène Bonnaud, L’inconscient de l’enfant, Jacques-Alain Miller dá outra indicação para a clínica com crianças: “O sujeito sai esmagado de seu encontro com a linguagem (…). Ele renasce, bornagain, do chamado feito a um segundo significante (…)[4]. Se o analista consegue fazer este segundo significante, consegue milagres com a criança”. Creio que esta frase explica a citação de Lacan pela qual “um significante representa a um sujeito para outro significante”[5]. Quer dizer, assinala o sujeito como efeito da cadeia significante. Miller aponta a função do analista como um lugar, na cadeia significante, para tratar o gozo na clínica com crianças. Os autistas não têm à sua disposição a cadeia significante para tratar o gozo, só possuem o S1. Os milagres se produzem graças ao tratamento do gozo pela lalíngua, que entra na dialética de outro corpo. Poderíamos dizer que se produz um tipo de efeito de cadeia dos S1, o que Rabanel denominou como a saída do autismo pelo diálogo.

   

Como transmitir a ética presente nesta posição em relação à criança autista com o campo educacional? Não se trata de uma técnica que possa se apreender e ser reproduzida, senão, que surge de uma posição subjetiva, a qual, verdadeiramente, se chega pela análise. Se trata, ao fim e ao cabo, de uma experiência que devemos aspirar que venha se contagiar com esse desejo.

     

A instituição como parceira

   

Aprender nos contextos educativos exige do autista, como de qualquer outra criança, que consinta em permanecer nas instituições educativas. A experiência demostra que não é nada fácil no início e, frequentemente, diversas manobras são necessárias para se obter esse seu consentimento. Para começar, os marcos educativos estão organizados ao redor de tanto sentido, que os autistas não podem experimentá-los, senão como um excesso e de forma invasiva. A criança autista não pode incluir-se no espaço do Outro —o espaço sempre é do Outro— sem determinadas condições prévias. E só quando estas ocorrem, pode então começar o trabalho. Mas, além disso, estas condições são singulares para cada caso. O que nos indica que, na realidade, quando buscamos a integração do autista no entorno escolar, partimos sempre do lugar equivocado. Só quando conseguimos que o entorno escolar se integre na singularidade da criança é que tomamos a boa direção.

   

Entrar no campo educativo significa aceitar colocar-se sob um Outro que pede. Em geral, os espaços educativos exigem a docilidade de seus pupilos à demanda do Outro educador. Frequentemente, se faz necessário esvaziar a demanda para que algo comece a se produzir.

   

A instituição pode iniciar a ser um lugar de vida, quando se constitui como um vazio, vez que é nele que se criam as condições para que surja a contingência de um novo laço. As experiências exitosas demonstram que não basta que as pessoas próximas às crianças com autismo se prestem docilmente a acompanhá-las em suas invenções, quase sempre é necessário um tipo de reviramento da própria instituição, suficientemente dócil, disposta a aprender a língua do autista.

     

Por que aprender?

   

Convenham na função civilizatória da educação. Neste sentido, a escola tem como primeira tarefa o viabilizar o laço coma comunidade. Sabemos, desde Freud, que isso exige uma renúncia pulsional. Constatei em minha prática com crianças, que a escolarização tem êxito quando facilita para o sujeito os recursos para tratar o gozo e fazer algo com ele, quer dizer, fazê-lo compatível com a civilização. Também fui testemunha dos fracassos quando a escola opera como uma maquinaria normativa e normalizadora, que não atende a nenhuma singularidade.

   

Vê-se, no caso das crianças autistas se projetar,seria como convidar alguém para a civilização, digamos assim, de uma maneira mais simples, alguém que não quer, ou que não pode formar parte com ela. Que tipo de laço promover então? Creio que somente a psicanálise oferece uma resposta que se funda neste paradoxo. Diferentemente de todas aquelas doutrinas que demandam a normalização da criança autista —quer dizer, que suprimem o sintoma em nome das normas do Outro— a psicanálise sustenta que somente pela via do sintoma é possível inventar um novo laço.Com a psicanálise entendemos o sintoma, como o tratamento que foi encontrado pelo sujeito para seu gozo. As doutrinas que exigem a renúncia pulsional, usando a repressão normalizadora, esquecem, ou ignoram, que suprimir o sintoma só conduz a que se produzam muitos outros sintomas, como testemunho disso, temos a esponenciação dos chamados transtornos de conduta. Por outro lado, quando uma criança consentiu em ficar sentada, quando se pede que deve ser assim, cumprimentar ao entrar na sala, despedir-se ao sair dela, repetir bom dia, obrigada, por favor, isso tudo não significa, de forma absoluta, que tenha estabelecido um laço com o Outro. Às vezes, pode ocorrer que o autista adote estas “pautas de conduta” para manter seu isolamento. Quer dizer, que as incorpore ao seu sintoma.

   

Digamos, pois, que diante da metodologia pedagógica, baseada na adoção de regras e princípios para todos, na qual a exceção só vem a confirmar a regra, há outra forma de aprender. Aquela que toma como ponto de partida, o sintoma do sujeito e o acompanha para que leve essas consequências o mais longe possível, propiciando o surgimento de efeitos civilizatórios. Aprender de outra maneira, significa orientar-se pelo real, para que este não engula o ser de modo inexorável, senão que lhe permita viver o melhor possível, também entre outros.

   

As experiências que testemunham sobre isso na psicanálise, nos falam disso. Também o encontramos em alguns relatos de autistas de alto nível, como Temple Grandin, que a partir de seu mal-estar no corpo, inventou uma maneira digna de formar parte da civilização, e inclusive de contribuir com ela. Não é este, pois, o melhor resultado para se aprender?

        Neus Carbonell. AP. Psicanalista em Barcelona. Membro da ELP e da AMP/ neus_carbonell@hotmail.com

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